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Opinião

O loop das desigualdades: A pandemia da covid-19 e seu impacto na vida das mulheres negras

Emanuelle F. Góes*

[Artigo originalmente publicado no Boletim Futuro do Cuidado #3]


 

Mulheres, grupos racialmente oprimidos, populações que vivem em contexto de privação são as mais impactadas, de forma direta e indireta, pelas crises humanitárias (econômicas, ambientais e sanitárias). Suas condições de vida precária se somam ao cotidiano de violação de direitos. Para as mulheres negras, que estão na base da pirâmide social brasileira, isto significa sofrer todas as consequências de um Estado racista patriarcal. Aqui se localiza a intersecção do sistema de opressão de raça-gênero-classe.

 

A pandemia da Covid-19, com sua capilaridade devastadora, encontrou terreno fértil nas sociedades com desigualdades prévias de raça, gênero, classe e território, que conformam assimetrias entre as pessoas, com lugares sociais de vantagens e desvantagens. No Brasil, indicadores sociais demonstram que mulheres negras são as que menos têm acesso ao mercado formal de trabalho e a bens e serviços como educação, moradia e saúde. Sueli Carneiro diz que mulheres negras sofrem com o fenômeno da dupla discriminação social, em consequência da conjugação perversa do racismo e do sexismo, que resulta em uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida.

 

O sistema de opressão (raça-gênero-classe) aprisiona e empurra as mulheres negras para esse loop histórico de desvantagens e violências, que se agudiza em contextos de pandemia e outras crises globais. Vale lembrar a epidemia mais recente, do vírus Zika, e suas consequências para as mulheres negras jovens do Norte e Nordeste do país. São mulheres que vivem com acesso irregular a serviços de saneamento básico, sofrem barreiras no acesso a serviços de saúde reprodutiva e são elas, em grande parte, as responsáveis pelo domicílio.

 

A pandemia do novo coronavírus se apresenta como um desafio para a humanidade, por conta da sua gravidade, forma de contágio, além da sua interação com doenças prévias, principalmente as crônicas (câncer, hipertensão, diabetes entre outras). Tem sido difícil implementar as medidas de prevenção da Covid-19, sobretudo em sociedades como o Brasil, com profundas desigualdades internas. O distanciamento, isolamento, uso de máscara, medidas de higiene são universais, mas não têm alcançado as mulheres negras de forma igualitária, pois para isso é preciso equidade. As desigualdades estão presentes nas medidas de prevenção, no acesso ao diagnóstico/testes de Covid-19, no acesso ao tratamento/hospitalizações, no risco de óbito e nos impactos sociais e econômicos causados pela pandemia.

 

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio-PNAD/IBGE (2018), cerca de 47,8% das mulheres negras estão inseridas no mercado de trabalho informal, enquanto as mulheres brancas são 34,7%, homens negros 46,9% e os homens brancos 34,7%. Vemos que em relação à informalidade as mulheres negras se aproximam dos homens negros. Aqui observamos o racismo institucional. Tanto as mulheres negras quanto os homens negros encontram mais barreiras para acessar o mercado de trabalho. A taxa de desocupação é sempre maior para elas e eles, e pior nesse contexto da pandemia. No 2º trimestre de 2020  a taxa de desocupação para mulheres negras foi de 18,2%, para homens negros 14,9%, para mulheres brancas 11,3% e para homens brancos 9,5% (DIEESE, 2020). Não há possibilidade de aderir ao isolamento nessas condições, pois são pessoas obrigadas a seguir procurando por trabalho pela necessidade de sobrevivência, com longos deslocamentos, usando transportes públicos nas grandes cidades ou acessando, de forma precária, serviços informais, como a uberização.

 

Por outro lado, são as mulheres que estão mais inseridas no mercado formal do cuidado, que em grande medida é essencial. Esta é uma área demarcada pelas hierarquias de gênero, sendo que nela, as mulheres negras estão submetidas à intersecção das opressões de gênero e raça.

 

São majoritariamente mulheres que estão na linha de frente como trabalhadoras da saúde, ocupando os lugares de maior exposição à contaminação pelo novo coronavírus em trabalhos que, na maioria das vezes, são precários e insalubres. As mulheres negras são maioria nos serviços gerais, como auxiliares e técnicas de enfermagem e quase metade das enfermeiras.

 

O trabalho doméstico não é um serviço essencial, exceto para uma sociedade racista patriarcal. Foi o que assistimos no início da pandemia: o primeiro óbito registrado por Covid-19 no Brasil, logo no início da pandemia, resultou da transmissão do vírus pela “patroa” em quarentena, para a funcionária, de 63 anos, que não tinha sido informada do risco de contágio. Foi também sobre o corpo de uma mulher negra que ocorreu o primeiro caso de morte materna causado pela Covid-19. Era uma jovem negra do interior da Bahia. Como em cenários anteriores, a morte materna atingiu de forma desproporcional as mulheres negras, não por questões relacionadas a comorbidades, mas por causa das barreiras no acesso aos serviços de saúde, como ventilação mecânica e Unidades de Tratamento Intensivo (UTI).

 

O contexto pandêmico se associa a todas as violências pré-existentes e tem sido um grande desafio olhar para o futuro e para a humanidade. As medidas universais de prevenção da transmissão da Covid-19 seguem um padrão que não reconhece as dinâmicas das desigualdades e suas interseccionalidades, que nesse momento estão adensadas.  A tirania do urgente se instala de forma a deixar de fora o que deveria ser o centro das políticas, das iniciativas, ou seja, as desigualdades e as violações de direitos que se expressam, por exemplo, no aumento da violência contra a mulher e na restrição do acesso a serviços de saúde reprodutiva.

 

Vejo caminhos para interromper este loop. Vejo caminhos com a participação das mulheres negras, das mulheres de modo geral, da população negra e de pessoas trans nos espaços de tomada de decisão, de implementação de políticas públicas e de controle social, sendo de fundamental importância, para o reposicionamento da sociedade,  a representação política populacional igualitária e equânime. Os corpos negros, das mulheres negras, têm o direito de circular, girar em torno da vida, nas estatísticas do bem viver. Para isso o movimento de mulheres negras tem feito muito ao longo do tempo. Mas precisamos de um Estado que responda a mais da metade da população, um Estado que responda para a maioria, para que um dia os corpos das mulheres negras só carreguem águas e histórias sobre nós.

 

O loop das desigualdades, como se interrompe esse ciclo? As informações do Cadastro Único (que direciona diversos programas sociais, entre eles, o Bolsa Família) revelam que a população negra representa 68%, e desses, 39% são mulheres. Fazem parte desse cadastro pessoas que vivem em privação extrema, e seu conjunto revela o ciclo da pobreza, e evidencia seu componente de raça, gênero e região. O ciclo da pobreza é o loop do racismo que sistematicamente tem ceifado vidas negras, perpetuando  o racismo genderizado, a transfobia racializada, o racismo que define quem vive ou quem morre, o genocídio.

 

* Emanuelle F. Góes é Pós-Doc (CIDACS/Fiocruz/Bahia) realizando estudos com Big Data (grandes bancos de dados), Fellow do Ubuntu Center on Racism, Global Movements & Population Health Equity (Drexel University Dornsife School of Public Health/EUA).